A METAMORFOSE – uma proposta de leitura analítica por Nina Ferraz, em 667 palavras
“A Metamorfose” é uma narrativa literária por excelência: a palavra é carne impessoal, transcende e se reveste de pele e significados. A fábula risível (um homem se transforma num inseto) atravessa os séculos e as fronteiras para ser uma obra atemporal da aldeia humana. O livro é tão verdadeiro porque Kafka sempre derrama um forte componente biográfico nos seus textos. É a comédia humana, a vida de qualquer "um qualquer", a cotidiana e esquecida, que segue de perto a história narrada, por mais absurda que ela seja. Questões universais como falta de ânimo e razão para viver, solidão, amor servil e desejo irrealizável são as sementes que Kafka vai jogando através de “A Metamorfose” dentro do juízo do leitor.
Analisando “A Metamorfose” pelo prisma das questões humanas confrontadas com a biografia do autor, as semelhanças entre Kafka e Gregor (protagonista de A Metamorfose) começam no fato simples de ambos viverem de atividades que não gostam e não apresentam perspectiva ou desafio. A fala explícita da personagem, cheia de enfado e resignação, afirma não gostar do que faz. Essa condição fria e burocrática de existir se faz presente até na escolha da linguagem: o jargão cartorial é uma característica do autor. Ele escreve: “haverei de refletir para ver se não movo uma ação estabelecendo reinvidicações que, ... acredite..., serão muito fáceis de fundamentar”...
Gregor (de sujeito) se faz objeto e afirma “sei que ninguém ama o caixeiro-viajante”. A solidão profunda e consciente é outra marca comum entre o criador e essa sua criatura. Os biógrafos dizem da solidão de Kafka. Mas, não importa quantos amigos você tenha no Facebook, a vida é uma viagem solitária. Em Gregor, essa solidão fica evidente no seu isolamento, em toda sua trajetória e na descrição detalhada da foto de uma mulher idealizada, recortada de uma revista, e pelo fato de, num dado momento, a moldura ficar colada no ventre do inseto, numa posição sexual. Kafka mostra, não diz.
Outra questão importante é o embuste do amor servil. Segundo Backes, uma situação típica em Kafka é a afirmação de que o homem avilta sua personalidade em favor da ordem superior. Sacrifica o gozo privado em favor do trabalho e da família, geralmente representada pela figura paterna. Sob certo prisma mais pessoal, não o do “Contrato Social” ou outros igualmente passíveis de arrazoamento, esse é o velho desejo de adequação, desejo de ser amado. Kafka expressa esse desejo aberta e biograficamente em sua obra “Carta ao Pai” e o desenha em cores rutilantes em “A Metamorfose”. Através do cativeiro voluntário de Gregor, o amor servil (subserviência, dedicação e abnegação) também é um tema do livro. O fato de Gregor não voar e não rastejar no teto (onde teria uma melhor visão e mais espaço) e seguir se arrastando penosamente pelo chão para não assustar a família e o fato de ele não atacar a despensa (mesmo morrendo de fome) são passagens que podem ilustrar esse ponto. Tem um trecho que ele fala que ficaria muito bem numa caixa, com furinhos para permitir sua respiração – querendo dizer que ele precisa menos de cuidados ou afirmação e mais de aceitação.
Talvez esse amor servil seja o vértice que inflexiona a curva do desejo. Também como Kafka, Gregor sente um amor irrealizável pela irmã. Ela é sempre a figura mais presente junto a Gregor (e Kafka chegou a morar uns tempos com sua irmã Ottla). Inicialmente Gregor é responsável pela irmã, mas depois da metamorfose ela passa a cuidar dele. Se no início tinha atenção e cuidado, logo se estabelece uma relação de autoridade e dependência. No final, a irmã acaba dizendo querer que ele desapareça e ele morre logo em seguida, quase para lhe satisfazer a vontade.
Irrefletida vítima do desejo de adequação e de amor, o homem trai a sua própria natureza, resultando exatamente no oposto: inadequação ao trabalho, `a família e ao mundo. O isolamento, a melancolia e a incompreensão resultantes determinam um processo de animalização, isso é o que nos diz Kafka finalmente.